Manuel Félix de Menezes

Em Canudos

De feito, o mês de setembro principiara auspicioso.

Logo em começo, no dia 4, uma bala de carabina havia abatido no arraial um cabecilha de valor. Baqueara junto as igrejas; e o açodamento com que os habitantes se precipitaram sobre o cadáver, e o levaram, delatava-lhe o prestigio.

A 6, sucesso de maior monta: caíram, uma após outra, as torres da igreja nova. O caso ocorrera depois de seis horas consecutivas de bombardeio. E fora inteiramente imprevisto. Determinara-o mesmo circunstância desagradável: um engano na remessa das munições tendo levado ao arraial, ao invés de granadas, balas rasas de Krupp pouco eficazes no canhoneio, resolvera-se gastá-las logo, revessando-as, de vez, sobre as igrejas, até se acabarem.

E o resultado fora surpreendente, rememorado em duas ordens do dia entusiásticas. O exército ficara, afinal, livre das seteiras altíssimas de onde o fulminavam os sitiados, porque as duas torres, assoberbando toda a linha do assédio, reduziam por toda a banda os ângulos mortos das trincheiras.

Desde 18 de julho revezavam-se nos seus campanários atiradores peritos - olhos percucientes devassando tudo - a que não se subtraia o menor vulto desviado do anteparo das casas.

Os comboios ao chegarem, dali recebiam, em cheio, no último passo, ao transporem o rio, antes da sanga em passagem coberta que os levava ao acampamento, descargas violentas.

As forças recém-vindas, a brigada auxiliar, o batalhão paulista e o 37° de infantaria, como vimos, do alto de suas arestas tinham recebido a primeira saudação ferocíssima do inimigo.

Uma "vaia entusiástica"

Haviam, afinal, caído. E ao vê-las baquear, uma após outra, imponentes, arrastando grandes panos de muro, desarticulando-se em grandes blocos em que vinham agarrados, tombando de borco, atiradores atrevidos - e batendo pesadamente no chão do largo, entre nuvens de poeira da argamassa esboroada, o exército inteiro, calando a fuzilaria, atroou os ares em alaridos retumbantes.

O comandante da 1a coluna caracterizou-o bem na ordem do dia correspondente ao feito:
"...prorrompendo nessa ocasião a linha de segurança e forças em apoio no acampamento entusiástica e violenta vaia na jagunçada."

"Quartel-General do comando da 1° coluna.
Canudos, 6 de setembro de 1897.
Ordem do dia n° 13.

Para conhecimento das forças sob meu comando publico o seguinte:
Determinando hoje aos comandantes das bocas de fogo que bombardeassem as torres da igreja nova, pontos escolhidos pelo inimigo para nos tirotear com mais eficácia, fazendo-nos muitas baixas por morte e ferimentos e resguardados de nossas pontarias, tive a satisfação de ver em seis horas consecutivas despenharem-se as torres, devido aos certeiros tiros dirigidos pelos 2os tenentes Manuel Félix de Menezes, Frutuoso Mendes e alferes H. Duque Estrada Macedo Soares, se bem se achasse com parte de doente o primeiro.
Louvo, portanto, esses bravos oficiais, que ainda mais uma vez deram prova de sua perícia na direção dos canhões que comandam, acrescendo mais ter-se o 2° tenente Manuel Félix apresentado pronto, estando com parte de doente, entusiasmado com o efeito que produziu não só a este como a todo o exército, que observava com interesse o efeito da artilharia, prorrompendo nessa ocasião a linha de segurança e forças em apoio no acampamento entusiástica e violenta vaia na jagunçada, e ter sido esse oficial o primeiro a iniciar o bombardeio e o último a atirar sobre a torre da direita, tendo o alferes Duque Estrada disparado o último sobre a da esquerda, conseguindo derribá-la" etc.

A campanha era aquilo mesmo. Do inicio ao termo, uma corrimaça lúgubre. Entusiástica vaia.. .

Como quer que seja terminara o encanto do inimigo. O arraial enorme repentinamente diminuíra; e decaíra; e se acaçapara, parecendo ainda mais afundado na depressão em que se adensava, sem mais as duas balizas brancas que o indicavam aos pegureiros - muito altas e esbeltas, arremessadas no firmamento azul, branqueando nas noites estreladas, diluindo-se misteriosamente na altura, objetivando o misticismo ingênuo e pondo junto dos céus as rezas propiciatórias dos sertanejos rudes e crendeiros.

Texto retirado do livro "Os Sertões" de Euclides da Cunha

Manuel Félix (de chapéu escuro ao centro) em Canudos