Minha mãe

Em nome de meus irmãos e de toda a minha família, desejo agradecer a presença de tantos amigos queridos, presença essa que representa o conforto, o carinho e a solidariedade de que tanto se necessita nessas horas. Vemos essa presença, acima de tudo, como homenagem à memória de nossa mãe e como manifestação de afeto a ela, que muito afeto soube distribuir ao longo de sua vida.

Minha mãe foi sempre e acima de tudo professora. Professora nas escolas por que passou, mas também professora de seus filhos, netos e de quantos buscaram e pediram dela uma palavra de orientação, de equilíbrio, de apaziguamento, de sensatez. Mercê da formação moral e espiritual forjada no seio da família, ela sempre soube indicar o caminho da bondade, do bom senso, da serenidade, do amor cristão, enfim.

Mãe extremamente carinhosa e esposa dedicadíssima, foi também minha primeira professora. Alfabetizou-me antes mesmo que eu fosse à escola, pois eu vivia a insistir nisso. Não por acaso. Eu a via sempre às voltas com os livros, o que despertou nos filhos o gosto pela leitura. Pequenos ainda, quando íamos com ela à cidade - e a expressão ir à cidade pode soar estranho aos mais jovens, mas era somente ir ao centro - essas idas incluíam invariavelmente uma passagem pelas livrarias da época.

Havia, também, outra faceta sua a ressaltar. Coisa pouco comum às mulheres dos anos 40, interessou-se pelo futebol para poder conversar com os filhos sobre o tema. E mais. Acompanhava com entusiasmo o marido e os meninos ao Pacaembu, palco maior das disputas. Até recentemente, cega e presa ao leito, ouvia músicas, noticiários e a narração dos jogos. Do Corinthians, claro, para o qual torcia por causa do George. Por triste ironia do destino, ela partiu no mesmo dia em que o clube viveu seu maior drama no esporte.

Quando atingiu os 92 ou 93 anos, deu para indagar-se e indagar-nos por que, afinal, ela haveria de viver tanto, superando a idade dos irmãos todos, que já haviam partido. E foram dez. Deus é que sabe das coisas, dizíamos, acrescentando que iríamos preparar-lhe uma grande festa para os 100 anos. Até com a banda da Polícia Militar à sua porta. “Não me desejem isso, que já estou cansada”, era sua resposta.
Pois há bem pouco tempo, não mais que dois meses, ela me chama pelo nome, como sempre fazia quando se tratava de algo mais sério, e diz:
“Geraldo, veja o que você acha de uma idéia que tive. Se eu chegar aos 100 anos, não vou querer uma festa. Gostaria apenas que as pessoas que me visitassem registrassem suas presenças num caderno bonito, usando uma caneta de ouro. Ou melhor, não precisa ser de ouro, mas dourada. Depois, quando estiverem reunidos os visitantes na sala, eu iria recitar-lhes a poesia A Caneta de Ouro.”

A tal poesia, de autoria por ela atribuída a Paulo Setúbal, o que não tive como confirmar, era um dos seus textos favoritos, que ela sabia de cor desde os tempos de juventude. E recitá-los freqüentemente, suponho, era um dos exercícios de que se valia para preservar a memória. Emocionou-me a idéia e prontamente a apoiei, ficando de providenciar caderno e caneta para a ocasião oportuna. Nunca mais voltou ao assunto, satisfeita com a idéia e aceitando a hipótese de chegar aos 100. Não chegou.

Curiosamente, o último diálogo que pude ter com ela, no hospital, dois dias antes de partir, foi sobre futebol. Perguntou-me do Corinthians e comentou como meu irmão deveria andar muito triste. Indagou do São Paulo e eu lhe disse que já era campeão, ao que manifestou satisfação por mim.
Por tudo isso, acho que logo, logo estará pedindo audiência a São Jorge para tentar melhorar as coisas para o Timão. Se é que já não o fez e providenciou logo um Mano Menezes para técnico, por julgar o nome familiar e de bom augúrio.

Para concluir, achei ontem num antigo livro seu, Terra Virgem, do escritor uruguaio Constancio Vigil, um pequeno trecho que ela sublinhou e que me ficou parecendo seu último recado:

Colhe e guarda minhas palavras.
Ainda que eu tombe, não deixes de escutar-me.
Dentro em pouco, serei uma sombra que se move na sombra... Mas, amando-te sempre, meu filho!

Sei que ela está bem, no lugar que Deus lhe destinou. Que descanse em paz.

São Paulo, 08/12/2007


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